sexta-feira, janeiro 27, 2006

Cap.2

Liguei a tv e coloquei-a sobre o braço do sofá onde permaneceu imóvel, a não ser pelos olhos inquietos que corriam dos meus para a palma da minha mão sem parar um segundo. Quando me distanciei vi que já não prestava mais atenção em mim e provavelmente esquecera tudo que vira, pois disse a ela que não era nada e que me esperasse, logo estaria de volta.
Fui ao banheiro do meu quarto, lavei minhas mãos e comecei a me despir. Deparei-me com as sobras da minha juventude vislumbradas através de um olhar mortiço, a juventude já castigada pela rebeldia da cabeça que não pensava e pelo descaso para com o tempo. Antigamente, certas vezes, ficava admirando meu corpo nu após o banho, me sentia até bonita, mas a luz mudava e o referencial era muito além daquilo, meu reflexo apenas havia me encantado, me enganado por alguns segundos, e isso era muito bom e muito ruim ao mesmo tempo.
O espelho gigante do banheiro estava posicionado estrategicamente para que nessa noite eu não pudesse evitá-lo. Fiquei pregada no chão por algum tempo, o suficiente para pensar, para rir e me autodestruir, comecei a chorar, me desesperar e finalmente quebrar o espelho com um dos bibelôs que enfeitava a pia. Em um segundo, o banheiro estava repleto de estilhaços de vidro e da pessoa que não era mais. A mesma criança de sempre estava novamente jogada no chão entre cacos e fracassos, adormecida por algum tempo no claustro da minha intimidade e agora era sua chance de se libertar. Desenhava esperança com os dedos trêmulos no azulejo azul claro do piso do banheiro, cheia de insegurança e com toda fragilidade de quem acaba de descobrir que Papai Noel nunca na verdade existiu, enquanto cantava num tom suave desafinado e engasgado uma música já estava fora de moda há muito tempo.
Julia bateu na porta como se eu ainda estivesse sonhando. Acabei adormecendo em meio do meu desespero, a pele do meu rosto parecia estar cheia de cola seca que ia se rompendo conforme me movia, meu cabelo desgrenhado emoldurava perfeitamente as expressões que refletiam minha agonia interna e algumas partes do meu corpo dormentes, sentia apenas minha coxa quando a descolava do chão, lembrava um pouco a dor que sentia quando a cera de depilação era arrebatada, só que um pouco mais intensa. Disse com a voz arranhada que já estava saindo, tomei um banho rápido e fui vê-la. Inha estava deitada em sua cama esperando meus desejos de bons sonhos. Ela não disse uma palavra sequer, se encolheu para um lado e desmaiou de sono, já passava das 10.
Depois de limpar minha frustração do banheiro, me perdi em pensamentos enquanto olhava a sombra do ventilador de teto que rebolava vagarosamente, duplicada pela luminosidade quase que fantasmagórica do abajur e da tv esquecida, delineando círculos sinuosos, duas rodelas de abacaxi pendentes. Nunca quis envelhecer, mas esperava a morte desde cedo, cheia de medo, em tudo na minha vida sempre fui a paciente, tinha a esperança de que ela sim pudesse apagar meus erros, meu desperdício, meu arrependimento, a agente do meu desejo mais profundo. Agora eu era uma ingrata reclamando da vida boa que tive. E me arrependendo mais uma vez quando desejei a morte em vez de enfrentar meu próprio destino.
Começou a chover torrencialmente mas logo pararia, a chuva de verão foi forte e passageira, ao contrário da minha noite, a mais longa de todas. Assisti a tempestade de camarote, ventos, pingos grandes e pesados chocavam-se contra o vidro da janela, clarões rompiam a escuridão da madrugada e da queda de luz, e logo depois estrondos. Silêncio. Relâmpagos e trovões não se desrespeitam nunca, um completa o outro na mesma intensidade, nenhum dos dois mantêm o ciclo sozinho. A dama-luz estréia diante da cortina grosseira e densa, inflama o céu frígido e oferece o palco a seu cavalheiro-trovão que por sua vez, clama por sua amada para que o espetáculo continue.

Às seis da manhã já estava de pé, não agüentava mais fingir pra mim mesma que estava conseguindo dormir, nenhuma posição era confortável o suficiente, então me levantei assim que começou a clarear. Fui até a varanda só para completar minha depressão, ao leste, rajadas alaranjadas e impetuosas agrediam a mim e ao oeste, éramos da mesma cor, da mesma forma, do mesmo fim, resquícios de uma antonímia, rosa-roxo-abatido.
Os pássaros começaram a cantar praticamente ao mesmo tempo, um despertador harmonioso, um canto como de cigarras convidando o Sol pro dia seguinte, mas a vida fora tirada pelo cinza invejoso da tristeza da minha alma.

Julia acordou algum tempo depois, fomos tomar café numa padaria famosa do bairro, durante o nascer do sol havia decidido que nada mais poderia me fazer mal, estava decidida a fazer tudo que me desse na telha, vontades e caprichos que não necessariamente teriam que ser os meus, qualquer coisa que pudesse amenizar as expectativas do meu desatar eterno.
Estava louca para comer um pão doce recheado de goiabada que não via nem em cheiro há muito tempo a não ser em sonhos. Quando tinha quarenta e sete anos me surpreendi com os resultados do meu check-up, desde então seguia uma dieta balanceada. Inha sofria por meus cuidados, eu nunca a deixava se empanturrar com todas as gostosuras que eu mesma sonhava, meu zelo e egoísmo excessivo não queriam que ela tivesse nem o prazer que eu não tinha, muito menos a frustração de um dia não poder mais se deliciar sem culpa.