terça-feira, dezembro 20, 2005

"Doce, doce, doce, a vida é um doce..."

Todo doce após o último pedaço, gosto amargo, ora suave ora quase que indigesto, dependente da douçura que carregua em seu paladar, no caso, o quanto amargo pode-se suportar com esse contraste todo. A maior parte dos amargos se desfazem após um copo d'água e a vontade de comer outro pedaço só é impedida se já estiver enjoado, ter mais uma vez a sensação de perfeição, e de que a felicidade é uma colherada que você mesmo guia, um destino seu, mas também uma ilusão de que aquele gosto delicioso irá durar para sempre. Outros amargos se entranham por entre saliva e gula. Esses não se desMancham por dias, nem mesmo com dez mil copos d'água, permanecem no fundo da lembrança como um anticorpo contra os próximos doces a serem servidos.

domingo, dezembro 11, 2005

Cap.1

Tudo seguia seu curso em perfeita sintonia, os movimentos de rotação e translação não se embaralhavam, o Sol nascia e se punha como o de costume. Toda noite antes de me deitar tinha a ilusão de que o tempo interrompia-se com um bocejo, passava a noite observando meu descanso, e só voltava a trabalhar pelo relógio quando eu acordasse de meus sonhos por vontade própria, ou propusesse um despertar exato.
Na primeira vez que cuspi sangue, o mundo parou.
Não parou para me admirar e sim cuspir na minha cara todas as chances que me deu, e eu ignorei. Uma cuspidela para cima, mirando em mim mesma, no centro da minha testa o tempo todo, e eu nem tinha me dado conta disso.

Fazia um calor absurdo, por mais que o Sol estivesse de castigo por ter dado a todos aqueles e aquelas na praia um bronzeado dourado, cor de ouro, que como o próprio ouro duraria por semanas e resistiria à sensibilidade dos couros menos curtidos pelos tantos dias que nascia naquela liberdade que só o azul cerúleo de verão oferecia de graça. A luz cinzenta e abafada deixava a melancolia tomar cada vez mais espaço, intimidando qualquer ensaio de diversão. A madrugada havia sido um tanto rebelde, não ventou, nenhum ar frio invadiu o quarto pela fresta da janela para me resfriar, hoje estava tudo morto, até as folhas mais verdes do quintal exibiam uma alegria irônica, sombrias mas felizes, ia chover.
Quarta-feira, o dia mais chato da semana, o sem graça do meio, um copo meio cheio ou meio vazio; A noite veio se arrastando por conta do horário de verão, as nuvens cinzas tomaram-se de tons róseos e pálidos, e o céu jazia envergonhado por trás de suas remendas. Estranhamente estava me divertindo bastante, tinha a companhia mais agradável que alguém poderia pedir, minha neta Julia, minha Inha, minha única netInha, minha JulInha. Um anjinho de Deus, uma criança doce, meiga e esperta para seus oito anos. Estava sentada no meu colo brincando com minhas rugas inevitáveis, o craquelê fosco e sem verniz da pele no meu pescoço, fazendo infinitas perguntas desde porque as pessoas tinham que ficar velhas até o que era aquilo que aquele homem e aquela mulher estavam fazendo na novela. Portanto, a última pergunta que me fez não soube responder, na verdade sabia sim, mas para poder explicá-la teria que desenterrar todo meu passado e que mesmo depois de tantos anos, ainda seria muito difícil de lidar. Meu rosto ainda queimava conforme meu peito. Perguntou-me o que era o amor.
O mundo parou e meu sorriso foi atropelado pela lembrança, mais presente do que passado, do que ainda continuava sendo o verdadeiro amor, o amor-diamante.

Tive uma crise de tosse mais uma vez. Naqueles últimos meses vinha acontecendo numa freqüência de se perguntar se já não estava chegando a minha hora de partir, no entanto sempre fugia desse questionamento afirmando a mim mesma que Julinha ainda era muito jovem e precisava de mim. Alguém havia de precisar, meu filho já estava criado e tinha sua própria vida, e só sua, Inha era apenas mais um de seus luxos desde que minha nora morreu. Fernando trabalhava o dia todo, era invariavelmente um escravo do capitalismo, não que sempre tivesse sido assim, mas de alguma forma deixou-se drogar por aquela papelada toda, uma tentativa frustrada de apagar da sua memória a noite trágica em que uma bala perdida “achou-se” na cabeça de sua esposa quando voltavam de uma festa.
Julia sofria como uma criança de pais separados, mas ao mesmo tempo tinha todos os mimos que só quando se é criado por uma avó pode se ter, regalias que em situações normais, entretanto em raras exceções, que os pais não são capazes de oferecer nem conceder.
Dessa foi bem mais doloroso, não a dor física, a dor de resposta, a dor de confirmação médica após um exame de que você está doente, e vai morrer, a resposta que evitava todas as vezes quando me perguntava até quando ia durar. Escapuliu algo de mim quando tossi pela última vez, era sangue, havia cuspido sangue, pela primeira vez e provavelmente não seria a última. O tempo parou sem que eu estivesse dormindo, poderia ser um pesadelo, mas parecia muito mais que real, tinha provas sólidas disso em minha própria mão.
Com um gritinho abafado, Inha arregalou seus olhos redondos que havia herdado de sua mãe, e exclamou “Vovó!” num tom de medo quase que esperando uma explicação sem ter que fazer a pergunta.
Acordei, finalmente acordei. O tempo não havia parado ali com o “pesadelo”, nem com o grito apavorado de filme de terror que Inha deu quando viu sangue, nem quando me perguntou sobre o amor, na verdade os últimos anos da minha vida sim, não haviam passado de um longo sonho, uma mentira. Finalmente acordei. Como que o tempo teve a ousadia de me despertar, como a Morte ousou bater em minha porta assim sem mais nem menos era o que eu me perguntava a princípio, era quase um capítulo de novela mexicana.
O tempo parara há muitos anos atrás, na verdade, eu A convidei. Comecei uma contagem regressiva para o meu perecer final quando aceitei dizer adeus à única pessoa que amei.
O claustro em que estive trancada nesse tempo todo, finalmente havia sido aberto nessa noite, a dor que sentia passou a um a suspiro de alívio, pois não tinha mais nada a perder, estava livre, estaria totalmente livre em poucos meses.